quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

RO 64: Cite-se a Alemanha pelos eventos da 2a Guerra

A decisão abaixo foi publicada num dos informativos de jurisprudência do STJ e levanta algumas questões muito importantes sobre jurisdição internacional, imunidade de jurisdição e, quiçá, jurisdição universal.

Um judeu francês naturalizado brasileiro processou o Estado alemão para obter indenização decorrente da ocupação nazista na França durante a 2a Guerra Mundial. A sentença de 1o grau extinguiu sem julgamento do mérito por falta de jurisdição internacional* brasileira, já que o caso não se encaixa nas três hipóteses do CPC 88 ou no CPC 89.

Sobre jurisdição internacional, a Min. Nancy afirma que as hipóteses dos arts. 88 e 89 não são exaustivas, invocando Botelho de Mesquita. Mas notem que quando o autor afirma que a enumeração não é exaustiva, ele está dizendo que o código não se preocupou em enumerar todas as hipóteses possíveis. No parágrafo seguinte, ele afirma: "deve-se entender...que não interessou ao Brasil o exercício de sua jurisdição sobre causas que não guardem, com o ordenamento jurídico nacional, nenhum dos pontos de contacto previstos nos arts. 88 e 89 do CPC. A jurisdição é uma atividade onerosa para o Estado, e portanto, para os contribuintes, e não deve ser exercida desnecessariamente. Por isto, em regra, deve-se entender que as causas não incluídas na previsão dos arts. 88 e 89 do CPC se acham excluídas da jurisdição brasileira." Será que houve algum mal entendido na leitura do autor? Não teria sido mais seguro citar autores como Pontes de Miranda, Carmen Tibúrcio ou Gaetano Morelli, que apontam que a jurisdição pré-existe e seria em tese ilimitada? Como vocês acham que deveria ser feita a interpretação dos arts. 88 e 89?

Mais adiante, o autor se refere aos princípios da efetividade e da submissão. O primeiro é descrito como um mecanismo para o Estado brasileiro não exercer jurisdição sobre causas incluídas nos arts. 88 e 89, mas sobre as quais não haveria interesse jurídico. Já o princípio da submissão funciona ao contrário: se o réu se submeter à jurisdição brasileira em hipótese não descrita nos arts. 88 e 89, então ela deve ser exercida.

A decisão aplica o raciocínio sobre o interesse jurídico invocando normas constitucionais, com destaque para o art. 4 da CF (direitos humanos, auto-determinação dos povos, repúdio ao racismo). Em decorrência dos valores esposados pela CF, o Brasil teria interesse na causa. Ou seja, o princípio da efetividade não incide para excluir desde logo a jurisdição int'l brasileira. O interessante é que a corte usou um princípio que eventualmente exclui a jurisdição para afirmar o interesse na causa e a possibilidade de firmar a jurisdição. Vocês estão de acordo com isso? Acham que foi uma boa forma de firmar a jurisdição brasileira?

O passo seguinte é analisar a submissão. Aqui, a corte analisa se haveria imunidade de jurisdição da Alemanha. Dando continuidade à construção jurisprudencial iniciada após a CF de 1988, aplica a tese da imunidade relativa, com base na diferença entre atos de império e atos de gestão. Rejeitando precedente de que a citação deve ser ordenada de acordo com qualificação do ato como de gestão ou império, a corte invoca o RO 57 (caso da família do Jango vs. EUA) para dizer que a qualificação só deve ser feita após a citação do Estado estrangeiro. Ou seja: cita-se o Estado e espera para ver se ele se submete à jurisdição brasileira. Deixando de lado as dificuldades de diferenciação entre ato de gestão e de império, o que vocês acham dessa prática de mandar citar? Se for claramente ato de império, deve mesmo mandar citar? E se for claramente ato de gestão, o que fazer se o Estado estrangeiro não se submeter?

Mas o ponto talvez mais interessante do caso não foi decidido pelo STJ e, talvez, tenhamos que esperar mais alguns anos para ver ser decidido. Vamos assumir que se trata de um ato de império e que a Alemanha não se submeteu à jurisdição brasileira. Pode / deve o Judiciário brasileiro passar por cima da imunidade de jurisdição uma vez que os atos podem ser qualificados como crimes contra a Humanidade?

Outra questão: em que medida essa decisão não corresponde na verdade a uma arrogação de jurisdição universal pelo Judiciário brasileiro?

Várias questões interessantes para debate nessa decisão! Estou ansioso para ouvir suas opiniões.

Clique aqui para acessar o inteiro teor.

*observação: o CPC usa o termo competência internacional para se referir na verdade à jurisdição brasileira. Eu optei pelo termo pleonástico jurisdição internacional para enfatizar que estamos falando de casos internacionais mas que ao mesmo tempo não se trata propriamente de competência.

DANOS MORAL E MATERIAL. ALEMANHA.

O autor, brasileiro naturalizado e residente no Brasil, busca indenização por danos morais e materiais decorrentes de diversas atrocidades de que foi vítima à época da ocupação da França pela Alemanha Nazista. Tais atos tiveram como fundamento, meramente, o fato de ser o autor judeu de nascença e se incluíam num projeto maior de eugenia, com o extermínio do povo judeu na Alemanha Nazista e nos países por ela ocupados. Para a Min. Relatora, dois princípios devem atuar na definição da jurisdição brasileira para conhecer de determinada causa. Além dos arts. 88 e 89 do CPC, que não são exaustivos, deve-se ter atenção, sempre, para os princípios da efetividade e da submissão. Compreendida a atuação deles, resta aplicá-los à hipótese dos autos. No precedente RO 13-PE, DJ 17/9/2007, a competência da autoridade brasileira foi fixada com base no art. 88, I, do CPC e a Min. Relatora firmou que a mesma idéia pode ser estendida à hipótese dos autos – a representação oficial do país, na plenitude, mediante sua embaixada e consulados no Brasil –, ainda destacando que os incisos da referenciada norma legal constituem pressupostos independentes e não conjuntos. Pelo princípio da efetividade, o Estado tem interesse no julgamento da causa. Diante disso, entendeu a Min. Relatora ser imperativo que se determine a citação, no processo sub judice, da República Federal da Alemanha para que, querendo, oponha resistência à sua submissão à autoridade judiciária brasileira. Somente após essa oposição, se ela for apresentada, é que se poderá decidir a questão. Tal medida não encontra óbice nem nos comandos dos arts. 88 e 89 do CPC, que tratam da competência (jurisdição) internacional brasileira, nem no princípio da imunidade de jurisdição que, segundo a mais moderna interpretação, prevalece apenas para as ações nas quais se discute a prática dos atos de império pelo Estado estrangeiro, não sendo passível de ser invocado para as ações nas quais se discutem atos de gestão. Diante disso, a Turma deu provimento ao recurso para determinar a citação da ré. RO 64-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/5/2008.

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