sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Buy American: protecionismo indevido ou estímulo econômico?

Talvez vocês estejam cientes que no American Recovery and Reinvestment Act of 2009 (pacote de estímulo econômico na casa de US$787 bilhões) foi incluída uma cláusula chamada "Buy American". Em resumo, a cláusula exige que os projetos de infra-estrutura previstos nessa lei (em certa medida parecida com o PAC) usem aço, ferro e bens manufaturados nos EUA, exceto nos seguintes casos: (1) interesse público; (2) indisponibilidade no mercado americano; (3) aumento dos custos do projeto superior a 25%.

Com a pressão européia e canadense, foi adicionada na última hora um artigo dizendo que essa cláusula será aplicada de acordo com as obrigações internacionais norte-americanas.

Em que medida esse dispositivo pode se qualificar como uma prática proibida pela OMC? Não sei muita coisa de comércio internacional e queria ouvir a opinião de vocês. O Valor Econômico de 20/02/2009 aponta que Restrição a produto de fora existe desde 1933 e que os argumentos brasileiros são frágeis (transcrita abaixo).

A cláusula e um comentário americano sobre a exceção de direito internacional estão transcritos abaixo.


BUY AMERICAN

SEC. 1605. Use of American Iron, Steel and Manufactured Goods

(a) None of the funds appropriated or otherwise made available by this Act may be used for a project for the construction, alteration, maintenance, or repair of a public building or public, unless all of the iron, steel, and manufactured goods used in the project are produced in the United States.

(b) Subsection (a) shall not apply in any case or category of cases in which the head of the federal department or agency involved finds that --

(1) applying subsection (a) would be inconsistent with the public interest;

(2) iron, steel, and the relevant manufactured goods are not produced in the United States in sufficient and reasonably available quantities and of a satisfactory quality; or

(3) inclusion of iron, steel, and manufactured goods produced in the United States will increase the cost of the overall project by more than 25 percent.

(c) If the head of a Federal department or agency determines that it is necessary to waive the application of subsection based on a finding under subsection (b), the head of the department or agency shall publish in the Federal Register a detailed written justification as to why the provision is being waived.

(d) this section shall be applied in a manner consistent with United States obligations under international agreements.

The Conference Report on H.R. 1 clarifies the intended use of this provision as follows:
Section 1605 provides for the use of American iron, steel and manufactured goods, except in certain instances. Section 1605(d) is not intended to repeal by implication the President's authority under Title III of the Trade Agreements Act of 1979. The conferees anticipate that the Administration will rely on the authority under 19 U.S.C. 2511(b) [of the Trade Agreements Act of 1979] to the extent necessary to comply with U.S. obligations under the WTO Agreement on Government Procurement and under U.S. free trade agreements and so that section 1605 will not apply to least developed countries to the same extent that it does not apply to the parties to those international agreements. The conferees also note that waiver authority under section 2511(b)(2) has not been used.

Argumentos brasileiros são frágeis, dizem especialistas
Raquel Landim. Valor Econômico. 20/02/2009

Os argumentos jurídicos para o Brasil questionar a cláusula "Buy American" do pacote de estímulo econômico do presidente Barack Obama são frágeis, afirmam especialistas em comércio exterior. Eles dizem que soluções "criativas" poderiam até sustentar uma investigação, mas os resultados são imprevisíveis.

Neste caso, a principal dificuldade do Brasil é que o país não é signatário do código de compras governamentais, estabelecido na Rodada Tóquio. O acordo, que era opcional e do qual participaram apenas 10 países e a União Europeia, impede a discriminação em licitações. Preocupados em manter o poder do Estado para estimular o crescimento, grandes emergentes como Brasil, China e Índia não participam.

Ao redigir o "Buy American", os Estados Unidos tomaram o cuidado de garantir que a lei será aplicada de maneira consistente com as obrigações internacionais, o que significa que não excluir os países signatários do código e também os parceiros em acordos de livre comércio, como México e América Central.
[...]
Segundo Soraya Rosar, coordenadora do departamento de comércio exterior da Confederação Nacional da Indústria (CNI), uma saída seria utilizar o artigo do acordo geral do antigo Gat (predecessor da OMC) que proíbe os países de adotar tratamento discriminatório no comércio internacional. Ela, no entanto, tem dúvidas se um artigo genérico prevaleceria sobre o código de compras governamentais, que é mais específico.

Mário Marconini, diretor de relações internacionais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), enxerga uma outra possibilidade. Ele explicou que o acordo TRIMS, assinado na Rodada Uruguai que regula o comércio de serviços, impede que os países exijam conteúdo nacional para conceder benefícios.

Por esse raciocínio, o Buy American vetaria a contratação de uma empreiteira brasileira para as obras, mas não poderia haver regras para a procedência dos insumos adquiridos pela empresa, como aço ou máquinas. O diretor da Fiesp, no entanto, não está seguro, de que seria possível fazer esse tipo de interpretação para "conteúdo nacional".

Marconini disse que é preciso "ser criativo" e lembra que, nos diversos processos antidumping contra o aço brasileiro, os Estados Unidos chegaram a contestar subsídios concedidos pelo governo na época da privatização de empresas como Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). " Veja só a distância que eles vão nesses processos", disse. Na sua opinião, é preciso analisar um pouco melhor o caso antes de levar para a OMC, mas o Brasil está certo em alertar genericamente contra o protecionismo.

Um comentário:

Rafael Baleroni disse...

Para consideração no debate, vejam trecho da entrevista do Rubens Ricupero no Valor de 25 de fevereiro:

Valor: O senhor vê espaço para o Brasil processar os EUA na OMC por conta do Buy American?

Ricupero: É importante para um país como o nosso, que pode ser afetado por medidas protecionistas, ter coerência de comportamento. E hoje existem problemas. No caso do dispositivo americano, não somos signatários - e com razão, não sou favorável - ao código de compras governamentais, que surgiu na Rodada Tóquio. Não devemos ser, porque ainda precisamos do poder de alavancagem do Estado para consolidar setores que não têm condições de concorrer no exterior. O Brasil fez bem. A China e a Índia também não fazem parte. Mas é duvidoso que o Brasil tenha autoridade para contestar que outro país dê preferência aos seus fornecedores, porque isso é amplamente utilizado aqui. A Petrobras dá preferência à indústria nacional em suas encomendas. É claro que podemos alegar que um dos princípios básicos do acordo geral é a não-discriminação. Mas é genérico, e fica muito difícil ganhar um painel nessa base. É preciso dizer isso, porque as pessoas ficam muito indignadas, mas é uma indignação meio fajuta, porque o Brasil não é um padrão de conduta nessa matéria. O argumento deles é o mesmo que o nosso: se o dinheiro é do governo, porque favorecer um fornecedor de fora?

Valor: Qual é a mensagem do Buy American para o mundo, ainda mais vindo de Obama, um presidente que se elegeu com a promessa do multilateralismo?

Ricupero: É preciso ver como Obama vai justificar isso. Pode ser com essa frase que só aplicarão de maneira consistente com as obrigações americanas nos acordos internacionais. Em princípio, é um fato negativo vindo do país que é o guardião do sistema multilateral do comércio. A expectativa do Obama é multilateralista, mas, em matéria de comércio, ele nunca foi um entusiasta. O clima que havia na época do Bill Clinton desapareceu. Não há ambiente para retrocesso, mas há pouco entusiasmo para avançar nesse campo.